Yggdrasil
por livio rosa
História de Alice no Porto Maravilha ou fragmentos da história da menina que aprendeu a rir (e pagou as consequências)

Uma manhã Alice acordou. Acordou e encontrou os tiros. O surdo estampido entrava pela sua janela. Encolheu-se.

 

“Veni, vidi vici. Vim, vi e venci. Foi o que disse Júlio César ao comentar sobre sua campanha militar na Gália. Ele chegou lá, deu uma olhada em volta e encheu os gauleses de porrada, só que lá a espada era de verdade.”

Bom, pelo menos a espada você vê pensou Alice e queria dizer isso pro professor de história, que ontem a policia tinha subido o morro atirando, e o tiro você não sabe de que lado vem, não da pra desviar…

“Os romanos não eram idiotas, sabiam que se quisessem ter sucesso na ocupação dos territórios teriam que aliar-se a uma parte da elite local e garantir uns poucos privilégios inofensivos”

O sinal bateu e a aula terminou. Alice foi até o professor e disse que a PM fazia a mesma coisa, acordo com quem dominava a área antes, o tráfico. O professor balançou a cabeça.

“Não Alice, não tem nada a ver, você não pode comparar o Império Romano à política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. São tempos e espaços totalmente diferentes”. Sorriu para ela como um pai que sorri a um filho que fez uma pergunta idiota.

Alice fez que sim com a cabeça e saiu. O professor olhou ela passar pela porta e suspirou, essas crianças, o que elas eram capazes de pensar! Ainda bem que estavam na escola, para que o professor botasse ordem nessas cabeças bagunçadas e confusas. E foi-se para casa, feliz com a heróica missão civilizadora de seu trabalho.

 

BUM e tudo cai por terra. BUM e o concreto se despedaça em migalhas, juntando-se numa montanha de entulho, misturados a cabos de aço. Os tratores e dinamites destroem e rugem pelos viadutos abandonados da cidade. É noite e tudo é silencioso. Mas apenas Alice vira uma esquina depara-se com escombros, pedras e até cabos elétricos. Silhuetas enormes e graves de estádios adormecidos repousam nos becos e vielas. É o que resta do desenvolvimento. Escombros, ruínas. E cadáveres. Entre os cúmulos de areia e ferrugem, avista-se um braço humano. O sangue escorre seco pelos trilhos não terminados. Alice abre a boca, mas a exclamação de horror perde-se no medo e nojo emudecidos. O ar é pesado e não há vento. Seus passos apressados ecoam, mas não há ninguém para ouvi-los.

 

Porto. No livro didático tem uma ilustração muito bonita de um porto fenício. Ao lado um pequeno texto fala quem foram os fenícios e da importância dos portos no comércio no Mediterrâneo, da troca cultural.

Alice fica observando cada detalhe da figura. Fecha os olhos e imagina como devia ser um porto naquela época, o movimento, os cheiros, os gritos em diversas línguas… Abre os olhos e suspira. Vai para a janela de seu pequeno quarto.

O mar azul e calmo está lá na frente. Alice também mora no porto de sua cidade, mas ao contrário do que se diz ela não acha que seja uma maravilha.

Uma gaivota passa pelo vento. Alice suspira e volta para o quarto.

 

 

 

Uma placa adverte VOCÊ SABE AONDE TEUS PASSOS TE CONDUZEM? Alice observa e pensa. Um sujeito saído não se sabe de onde com uma flauta e um pasamontañas que toca umas notas e diz “não sei, mas o que sei me basta”.

-E o que é que o senhor sabe?-pergunta curiosa Alice, virando o rosto

-Que abaixo e à esquerda se encontra o coração- e ele ri, tocando notas aleatórias.

Logo some no meio da fumaça, deixando sua flauta nas mãos de Alice. Ela a segura. Olha em volta, ninguém. Com a flauta bem apertada, segue o caminho. Mas de repente para. Segue o caminho, ok, faz sentido, mas…. para onde?

Um passarinho vem tirá-la da inércia. Está escuro e ele aponta para uma luz. Alice bate a mão na testa e exclama:

-Mas é claro, até o amanhecer, caminhar até o amanhecer!

 

Alice está no meio de um imenso campo verde, totalmente plano, sem nada a não ser grama e vento. Flores aparecem do chão. Crescem, nascem e morrem. De repente aproxima-se uma figura a cavalo. É um homem, vestido com um casaco pesado e o olhar profundo. Traz consigo o vento que sussurra histórias de dor e alegria, de esperanças e desilusões. O cavalgar dos cavalos, o brilhar dos sabres e ecoar dos tiros, o medo do sangue. Mas também a alegria do trabalho coletivo, de ser dono da própria vida. Alice olha para a figura sem saber o que dizer. Nem consegue se mexer.

O homem se curva da sela e oferece uma rosa negra à Alice. Diz “Esta é tua flor, cabe a ti transformá-la em semente”. Tudo se funde numa única imagem.

Alice acorda e encontra os tiros. Os surdos estampidos entram pela sua janela. Mas dessa vez Alice não tem mais medo. Agora tem uma rosa para ajudá-la. Tentando não escutar os tiros, sorri.

 

 

Um caracol. Na verdade parecem ser cinco. Cinco caracóis se aproximam de Alice. Ela se ajoelha no chão macio, na terra que ainda resta. Foi plantar sua rosa, quem sabe assim ela irá transformar-se em semente. Andou quilômetros, pegou três ônibus e um trem noturno, mas conseguiu chegar até as montanhas, no que ainda resta de terra e árvores.

“Não se preocupe, vamos cuidar da sua rosa para que vire semente. Está segura conosco” dizem os caracóis, lentamente mas de maneira segura.

Alice sorri. Os acaricia. Ri. Finalmente ri. Ri e ao rir sente-se como libertada de um peso. Muitos pesos de muitos litros de sangue, de muitos incêndios. Ri e sua risada é límpida como o rio cristalino.

O por do sol enche o céu de nuvens rosas.

Uma revoada de pássaros. Um baque surdo na água. Pequenas ondas que se movem, manchadas de vermelho.

 

No final da página lê-se: ao não saber como terminar, a personagem Alice foi removida do conto, dando um fim a todas as preocupações dos editores

 

            As estrelas despontam no céu e a chuva cai para lavar a terra. Ao longe pode-se ouvir o som ligeiro de uma flauta.

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