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por livio rosa
RACHADURAS – SOBRE UM CASO DE POLÍCIA

O telefone tocou.

-Alô, delegacia de policia… Sim, ok… enviaremos alguém agora mesmo.

O policial desligou e logo digitou um número.

-Oi, inspetor, encontraram um morto na rua Roccafordi. O senhor pode ir? Não, a Manfredi não se encontra.

Desligou o telefone novamente e o colocou no lugar. E tudo seguiu normalmente, como sempre.

 

Enquanto se aproximava da cena do crime o inspetor de policia Bovasco blasfemava em voz baixa e pensava na bronca que daria à agente Manfredi. Chovia levemente, as gotas caindo incessantemente mas quase a acariciar a pele, como um aviso. Desceu do carro e passou pelas linhas de sigilo que circundavam a área. Em volta os olhares de curiosos e o gritar dos jornalistas em busca de detalhes.

A rua tinha um pequeno espaço à direita com alguns arbustos, um par de árvores e alguns bancos. O inspetor já havia freqüentado o espaço quando era mais jovens, com amigos e namoradas, sempre acompanhado de uma garrafa de vinho. Sorriu timidamente às lembranças, não era daqueles que transmitem emoções. Era uma espécie de pequeno mirante, alguns metros acima de uma parte da cidade, cinza e escura.

O cadáver estava perto do parapeito. Um pouco mais à esquerda tinha uma escada que descia.

Era uma mulher deitada de barriga para baixo. Em volta alguns policiais procuravam evidencias e fotografavam qualquer detalhe, olhavam em volta como cães que farejam o ar, em busca de pistas e provas.

Perguntou onde estava o médico legal e responderam que estava a caminho. De fato este cehgou um pouco depois desculpando-se pelo transito. Examinou o corpo e levantou a cabeça, tirando-a da poça d’água onde jazia. Seu olhar fez-se imediatamente obscuro e um véu caiu sobre sua face, a testa cheia de dobras inquiridoras. Chamou o inspetor Bovasco para que olhasse. Este emitiu quase em um sussurro “caralho”. A terra faltou-lhe sob os pés, o estomago apertou-se e o ar faltou, cambaleando para trás, quase caiu. Com a cara totalmente pálida, voltou ao equilíbrio repetindo em voz baixíssima “caralho, caralho”. Aos poucos foi levantando a voz e a enormidade do acontecido tomou-o com todo seu furor e foi gritando todos os xingamentos e blasfêmias que se lembrava. A noticia se espalhou entre os agentes.

Com o corpo frio e pálido estava jogada na lama com um buraco negro na testa a agente policial Laura Manfredi de 29 anos que aquela manhã não tinha ido á delegacia. Bovasco, entre raiva e lágrimas percebeu que não poderia mais repreendê-la sobre sua conduta no trabalho e dar-lhe a bronca que tinha preparado. Nunca mais.

 

Na delegacia reinava a confusão mais completa dos últimos tempos. A noticia da morte da Manfredi tinha rompido o cotidiano e levado a desorientação entre todos.

O inspetor Bovasco estava imóvel com o olhar perdido há horas. Não conseguia pensar. Um cigarro do qual subia uma leve linha de fumaça, se equilibrava entre seus dedos e um café já frio estavam à frente dele, apoiados na escrivaninha. A chuva continuava a cair e batia na janela como dedos sobre uma máquina de escrever.

De repente um pensamento tirou-o da letargia. Por que? Por que a haviam matado?? Bateu o punho na mesa, tinha decidido. Iria descobrir o canalha que havia feito aquilo e iria mandar aquele desgraçado passar as férias na prisão. Por Deus se ia descobrir!

 

Reuniram-se com delegado. Ele, o inspetor-chefe Varza e o agente Rocco iriam indagar (e resolvido) o caso.

Primeiro voltaram à cena do crime e falaram com todos que moravam nas redondezas. Obviamente ninguém havia visto ou escutado nada.

Voltaram desiludidos e derrotados para a delegacia que já era noite e não tinham nem a sombra de uma prova ou uma qualquer indicação.

O departamento cientifico também não tinham encontrado nada de interessante. Ao contrário as análises do médico legal resultaram em alguma coisa.

A temperatura fria e a palidez do corpo demonstraram que Laura havia morrido na noite anterior, e a total falta de manchas de sangue ou massa cerebral no local revelaram que ela não era morta onde a haviam encontrado.

Pena que não tinham condições para dizer aonde. Então ao invés de avançarem, retrocederam, agora não tinham nem um cenário.

De qualquer jeito se despediram com tapinhas nos ombros e dizendo-se que iriam acabar pegando o culpado. E neles esta idéia era forte e genuína, que por fim iriam encontrar o maldito bastardo que havia assassinado a colega deles. Intrigava-os não conseguir esboçar uma hipótese de motivo, não conseguiam descobrir, por mais que se esforçassem em inúmeros raciocínios. Era como caminhar no escuro, pois não tinham uma lanterna para guiá-los, não sabiam o motivo.

E nunca o souberam.

 

No dia seguinte interrogaram amigos e parentes na vítima. Vitima? Podia Laura Manfredi, colega de tantas histórias ser reduzida ao mero papel de vítima? Era assim que o frio vocabulário de policial tinha substituído a lembrança daquele sorriso?

Bovasco se amaldiçoou mentalmente e voltou sua atenção para o rosto do garoto do outro lado da mesa. A expressão visual do inspetor era impassível e austera, a voz calma e acolhedora, mas sempre firme e decidida. Encarnava à perfeição a imagem do policial tenaz e corajoso, seguro de si e de sua missão de paz.

O garoto era um pouco mais jovem da Manfredi. Tinha o olhar perdido e os olhos avermelhados dos choros longos e desesperados. Era o irmão.

O inspetor Bovasco começou:

-Senhor Manfredi, sua irmã era uma excelente policial. Audaz, perspicaz, paciente… Nunca a esqueceremos. Mas – tossiu levemente – as circunstâncias nos impõe pressa e sinto muito não poder esperar um pouco para chamá-lo.

Este continuou ali, escutando imóvel, e Bovasco continuou após uma breve pausa.

-Sua irmã morreu com uma bala certeira no meio da testa, o que nos faz pensar a uma execução. O senhor imagina o motivo ou sabe alguma coisa? Por acaso notou agitação ou medo nela nos últimos tempos?

O irmão não respondeu, persistindo em sua postura imóvel, como sele ele também fosse um cadáver. Bovasco esperou, o ponteiro dos segundos avisando que o tempo passava. Depois de um tempo o inspetor franziu a testa e se curvou para frente.

-Olhe, eu sei que sua dor é muito forte, mas o meu e o dos meus colegas também é. Se ficarmos nesse desespero não vamos a lugar nenhum, e deixaremos de fazer nosso dever: encontrar o assassino. Nos ajude a descobrir quem fez isso e a puni-lo.

O garoto emitiu um gemido que devia ser uma meia risada.

-E do que vai adiantar? Isso poderá trazer Laura de volta em vida? Não, Laura morreu e nada vai mudar isso.

Bovasco respirou fundo e disse em tom decidido, quase emocionado:

-Não, nada vai mudar isso. Mas a sua irmã havia escolhido um caminho. O caminho do bem. Um caminho para impedir outras mortes como a sua. Então agora o senhor vai me responder, que é sem duvida aquilo que Laura iria querer que você fizesse.

O outro suspirou.

-Sim, talvez tenha razão… pergunte logo que terminamos cedo.

Bovasco não sabia, mas nesse momento sobre o seu perfeito e límpido muro moral tinha surgido uma rachadura.

 

O inspetor-chefe Varza, o agente Rocco e o inspetor Bovasco sentavam em volta da mesa da sala de reuniões.

Estavam em silencio, ninguém sabia o que dizer, mas todos sabiam o que estava acontecendo. Segundo dia de investigação, dezenas de interrogados e resultados zero.

O dia seguinte fizeram a mesma coisa com os colegas. Os resultados foram os mesmos.

Novamente estavam em volta da mesa, dessa vez com um jornal em cima.

“Policial morta a sangue frio. A policia tropeça no escuro” dizia a manchete.

No quarto dia controlaram as ultimas investigações que a Manfredi tinha feito. Depois deram uma olhada nas ligações feitas e recebidas nos últimos meses. Após isso resultar em nada, decidiram ver os trajetos que tinha feito pela cidade nas ultimas semanas. Nada, zero absoluto, nada de estranho, tudo normal. Mais uma vez o dia terminou em volta da mesa da sala de reuniões, dessa vez tendo que encher o café de açúcar para tentar diminuir a amargura.

No quinto dia começaram se reunindo diretamente em volta da mesa. Fizeram hipóteses de possíveis motivos e dinâmicas. Conseguiram um monte de historias e nenhuma plausível, todas muito fracas cheias de problemas que assim como estavam pareciam antes de tudo mais que impossíveis.

Ao fim estavam de novo no ponto zero e seus cérebros estavam como limões espremidos.

 

Nessa noite Bovasco sonhou. Sonhou aquela manhã de chuva. E quando teve a cena de descoberta da identidade do cadáver a imagem fixou-se sobre o rosto de Laura Manfredi que ficava sempre maior, o buraco negro no meio da testa alargou-se até engolir tudo. Bovasco também foi sugado por aquele buraco ipnotico. Sentiu-se cair no vazio por uma eternidade, tudo na mais completa escuridão.

Então de repente acordou. Um cachorro latia em algum lugar da rua lá longe. Bovasco murmurou alguns palavrões e tentou voltar a dormir, apesar do suor e da angustia que o devoravam.

 

Tinham se passado dois anos. Bovasco estava no mirante pequeno e estreito. Dois anos. Tinham tentado, mas não tinham conseguido. Após um mês e duas semanas e nenhum avanço a investigação tinha sido arquivada e acabaram por concluir que provavelmente a agente policial Laura Manfredi, 29, tinha sido assassinada pelo crime organizado como vingança contra a instituição policial.

Os jornalistas tinham escrito e o delegado tinha concordado e se congratulado pelo sucesso das investigações. E todos se deram tapas nos ombros antes de voltarem à rotina de todos os dias.

Bovasco agüentou um pouco. Mas não conseguiu, sentia-se frustrado, incompleto, culpado. Começara a fazer tudo de má vontade. Deram-lhe uma licença e ele passou longos dias encarando o teto de sua casa. Ao voltar trabalhou de maneira cada vez pior. Mandaram-no para o arquivo. Bovasco não reagiu.

Dias atrás aconteceu-lhe de ter que digitalizar alguns papeis e entre eles os compilados pela Manfredi. Havia lido todos, da primeira à ultima letra. Agora estava ali, chorando naquele mirante. Acabara de pedir demissão.

A rachadura que tinha se aberto havia aumentado, crescido cada vez mais, até aquele momento em que o muro inteiro desmoronou de uma só vez. Não tinha servido a nada… E mesmo se tivesse… Laura Manfredi não teria voltado à vida.

Sentiu-se cair no vazio, sugado.

No dia seguinte o inspetor de polícia Bovasco foi encontrado morto, com um buraco negro no meio da testa

 

 

 

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