Yggdrasil
por livio rosa
ENTRE RUAS
Categories: Fabulas dos galhos

Prólogo, da ambientação

Era um dia de verão no início de Agosto de 2012 na cidade de Roma (capital da Itália).

 

 

Capítulo I, da busca

Minha meta era a última casa da rua Andrea Doria. Andrea Doria foi um almirante da cidade-estado de Gênova (sempre na Itália) nos séculos XV e XVI. A Doria não faltou ocasião de mudar de rei ao qual servia, quando lhe fosse conveniente e assim o fez.

Mas não era essa história que eu procurava e esbarrei nela sem querer. O que eu procurava naquela rua era a casa onde Errico Malatesta passou seus últimos dias (nos anos 30), confinado em prisão domiciliar pela ditadura fascista de Mussolini.

Malatesta foi um importante militante anarquista das primeiras décadas do século XX e participou de inúmeros conflitos, escreveu milhares de textos e foi constantemente perseguido por polícias de diversos países.

Naquela época (2012) eu estava terminando de ler uma biografia dele (muito boa por sinal) e quis ir ver com meus olhos aquela casa e o que havia em volta dela hoje.

Uma rua com um movimento considerável e um chafariz modesto no final. Nesse final muito daquilo que aqui no Rio se conhece muito bem, ao que se dá o nome de camelôs, com objetos dos mais diversos a venda e expostos em panos sobre o chão.

Na parede da casa tinha uma placa com o nome do Malatesta completo, data de nascimento e de morte, a indicação que ele ali viveu e morreu, uma coroa de louros secos e quase tão marrons como o muro e a curiosa definição de quem foi o Malatesta: “Apostolo da Anarquia”.

Tirei umas fotos, dei uma olhada em volta e pra registrar esse momento de encontro de calendários e geografias (eu tava vindo do Brasil afinal) tirei da mochila uma bandeira negra e vermelha com o a linha divisória em diagonal feita em tecido TNT e costurada à mão.

Pedi que um senhor que ali estava tirasse uma foto minha. O cara não sabia mexer numa câmera fotográfica (comprada no Edifício Central, daquelas mais simples e baratas possíveis) e as fotos ficaram muito tremidas. Vi que ele não sabia tirar foto e olhei pra ver se outro alguém podia tirar uma foto.

Aí que vi duas figurinhas se agitando e falando em “foto, foto” e fazendo o gesto com a mão, enquanto puxavam e andavam sobre uma cadeira de rodas sem encosto, encontrada quem sabe aonde. Eram duas crianças, Krina e Raul (não sei se é assim que se escreve).

Deviam ser irmãos, vinham da Romênia, cuja a mãe devia ser uma mulher que ficou nos observando e cuidava de umas mercadorias. Krina era mais velha e articulava umas poucas palavras de italiano, nos entendemos as custas, e com bastante gestos. Raul era mais novo e não conseguia falar, emitia apenas alguns sons indistintos e como Krina me explicou, era mudo.

Tirei várias fotos deles, eles tiraram umas fotos minhas (afinal consegui minha foto com a bandeira e a placa do Malatesta) e tiravam da rua, ou Raul apontava prum lugar e Krina traduzia numa palavra o objeto da próxima fotografia.

Tentei perguntar o que achavam da Itália, Krina respondeu que não tinha entendido a pergunta.

A brincadeira das fotos continuou, fomos até o chafariz (que Krina chamava de “água”). Até que falei que já tava na hora deu ir e nos despedimos. Voltei pelo mesmo caminho de onde tinha vindo, passei pelo Malatesta e cumprimentei sua placa com os olhos e em silencio, e me voltei mais uma vez para acenar às duas crianças.

 

Epílogo, dos destinos

A bandeira voltou e participou de muitas manifestações, valendo-me a piada de companheiros sobre minhas bandeiras “precárias e feias”. Acabou que na manifestação do dia 13 de junho passei ela a alguém e depois a vi sendo hasteada num dos mastros da ALERJ. Não sei o que aconteceu com ela depois disso, mas imagino que tenha sido arrancada e rasgada pela policia.

A câmera fotográfica me acompanhou por muitas outras viagens, guardando olhos e sorrisos dos lugares em que passei e suas paisagens, palcos de diversas lutas e histórias. Enquanto escrevo ela está ao meu lado, aguardando a próxima viagem e pilhas para funcionar.

Andrea Doria além da rua ganhou nome de navio, série de TV e música do Legião Urbana.

Errico Malatesta até hoje é um grande militante e teórico anarquista citado por todos os lados ao redor do globo, mesmo que só seja nomeado pelos de baixo. Seus textos ainda são editados e lidos.

Imagino que a rua e a casa continuem as mesmas, com centenas de pessoas que passam por lá por dia e seus camelôs.

Não sei o que aconteceu com Krina e Raul, crianças como todas as outras do mundo, obrigadas a imigrar de sua terra de origem para ir morar numa terra estrangeira onde não são bem vindas. Não sei como seguiram suas vidas e muitas histórias seriam possíveis.

Mas não queria que sua memória se apagasse. Que pelo menos, mesmo não sabendo se sua história, seus rostos, nomes e o que fizeram numa meia hora de uma tarde qualquer seja algum registro.

A vida dessas duas crianças é insignificante, servem apenas para aumentar as fileiras dos imigrantes ilegais que alimentam a exploração e o desenvolvimento do capitalismo e do Produto Interno Bruto italianoIsso, além de um enorme absurdo, é uma horrenda realidade que despedaça a alegria. E é algo que deve ser enfrentado e destruído.

Quando Raul foi botar o braço em volta do ombro de sua irmã para posar pra foto, meu dedo disparou o botão sem querer, e junto aos dois saiu esse senhor de camisa amarela, cujo nome, origem e historia eu não faço ideia, assim como o motivo pelo qual ele passou.

Não sei muitas coisas. E talvez nunca as saiba. Mas enquanto houver palavras a serem ditas e histórias a serem contadas, desafiaremos a realidade imposta, colocando que a História e a vida não é só dos presidentes e generais, pelos Andreas Dorias e reis. Mas também pelos Malatestas, Krinas e Rauls.

Para que nossa memória não se apague, que o Malatesta também teve infância.

Dedicado à Krina, Raul, Leonardo (“Léo”), Lucie, às crianças sem-terrinha do MST e às crianças curdas de Rojava

Livio Basevi Rosa, Outubro de 2014

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