Yggdrasil
por livio rosa
Fragmentos de Outono
Categories: O tempo das cerejas

Inverno

Minúsculos pontinhos brancos se movem no pequeno feixe de luz que o abajur lança em meio à escuridão. É pó, poeira. Aquilo tanto odiado, que dá alergias e tanto trabalho aos humanos que tem de limpar suas casas, também tem seu momento de beleza.

Fora, a rua está em silêncio, exceto por algum latido, miado ou quando de tempo em tempo passa um trem, não mais apitando como décadas atrás, mas fazendo ranger os trilhos e soltando faíscas dos fios elétricos.

Não consigo dormir, e o motivo é obvio demais para tentar fugir: um misto de saudade, ânsia e insegurança.

Sabe quando te arde dentro um fogo e de repente ele tem que se conter, diminuir e dar uma calmada, quase se apagando, quando estava num crescendo cada vez maior? Pois é, a minha é a melancolia das fogueiras apagadas. Só restam as brasas.

A noite está escura, e os lampiões pouco iluminam as ruas. Passos apressados lá em baixo, mais de frio do que medo.

Pego a gaita velha da minha mãe e assopro lentamente no tom mais grave. É como se fosse um dos “apitos” de navio, daqueles do inicio do século XX, no porto, com gente que se despede e se encontra, de quem deixa tudo para a aventura em busca de uma vida melhor e desconhecida, um vai e vem enorme e confuso, enquanto uma ou outra gaivota sobrevoa a cena soltando seus gritos.

A imagem é muito viva, e a proposito de imigração, despedidas, encontros, gaivotas e século XX a mente e o coração me transportam para meses e anos antes, uma história feita de encontros e despedidas, mas não há navios. Há o mar, ônibus e trens, e mais do que o dia e o sol, é mais feita de lua, madrugada e nascer do astro solar.

Não é uma história de ondas, mas de ventos.

 

Sentidos e objetivos

Dia de aula. Passemos por cima do acordar e do percurso rotineiro até a escola, são totalmente dispensáveis e não teria muito o que contar, fora o sono e a mesmice de quem vai trabalhar enquanto Deus vela para que acordem antes que o ponto no qual devam saltar passe.

O sol iluminava o pátio e nos esquentávamos como lagartas ao sol. Pequena multidão de meia hora, antes que a campainha toque.

As palavras sopravam leves, tão leves que não ficaram na memória, não tanto como as sensações, o sol, a calma e os risos.

Naquele dia Stepan chegou com uma nova noticia. Seus olhos faiscavam e um leve sorriso ocupara seu rosto.

Não precisou falar muito, até porque para Stepan os gestos serviam melhor do que as palavras, era uma pessoa simples e sem grandes ambições, mas com uma enorme capacidade de compreender a solidariedade e o compromisso.

Sobre qual fosse a noticia a minha mente já esqueceu, o que ficou mesmo foi a memoria daquele sol morno da manhã, da meia hora flutuante entre uma aula e outra, ou melhor, entre uma paranoia de vestibular e outra. Ficou a lembrança de Stepan e nossos leves compatriotas, leves pois flutuávamos sobre a realidade.

Talvez tenha sido isso, mais do que a noticia aquele dia eu e Stepan trocamos olhares que hoje me parecem ser de quando começamos a deixar e flutuar, sentíamos vontade de botar os pés no chão e sentir a terra.

Podem nos recriminar, flutuar com certeza é um dom que Santos Dummont nunca iria nos perdoar por ter renunciado a ele, mas bom, na vida cada um faz suas escolhas. Apesar de que nós dois não sabíamos na época que era uma escolha, nos parecia mais uma curiosidade, demoraria um pouco para tomarmos a consciência de que uma vez na terra não se volta para as nuvens. Uma vez em baixo, é difícil voltar a subir.

Ah, talvez a noticia fosse essa, a passagem ia aumentar.

 

A janela do ônibus é, muitas vezes, como uma tela de cinema. Por ela passa a cidade e as pessoas seguindo sua vida. Não ouvimos as palavras ditas, apenas um gesto, um sorriso ou uma imprecação. E fica-se ai a imaginar a vida daquela pessoa, e logo vem outra e mais outras mil, podendo em algumas ocasiões aparecer um rosto conhecido.

A paisagem urbana desliza e as pessoas se sucedem, as histórias se atropelam, e mal são imaginadas já se vão embora.

Dentro de cada um daqueles quadradinhos iluminados ao qual damos o nome de janela, há uma vida, uma história, um sonho, um desejo, um motivo pra chorar e outro para rir. E são inúmeros. Só assim pra gente se dar conto de quantos somos, milhares de milhões.

E como se não bastasse, ao saltarmos Stepan aponta para a cidade que nos cerca.

-Tá vendo isso? Todo esse asfalto, esses prédios, tudo, mas absolutamente TUDO o que a gente tá vendo foi construído pelo ser humano, por mãos como as nossas. Não é uma loucura pensar nisso? Na maioria das vezes a gente não se da conta, mas se parar pra pensar é… é assustador!

Olhei pensativo. Estava amanhecendo, aos poucos o céu se enchia de azul, com uma borda rubra, indicando o aparecer do Sol. Grupos de pássaros passavam voando, vários, indo para sabe-se lá aonde.

-Sim, e mesmo assim… olha pra esses pássaros, pro céu, pro sol. Até pras árvores que nós plantamos. Parece que estão nem um pouco aí para nós. Isso também é assustador.

E ficamos olhando a cidade passar, lentamente, como um gigante que acaba de acordar.

Depois disso começou a me roer uma terrível duvida: o que eu queria da minha vida? Aonde que queria chegar?

Devorado pela duvida em semi-desespero fui ter com Michael, que sempre tinha boas palavras para lavar a alma.

A livraria de Michael se chamava “O Labirinto” e nela se encontravam os mais variados livros e uma discreta estante de filmes. “Um filme não pode contar palavras, mas um livro não pode contar o silêncio” era a justificativa de Michael sobre ter poucos, porém alguns, filmes.

Muitas vezes me perguntei se a livraria não fosse uma extensão do próprio Michael, esta tinha uma lógica toda sua, muito parecida com a do velho. Os preços eram feitos na hora, em base à necessidade do comprador e seus sentimentos, podia acontecer de Michael não deixar uma pessoa comprar tal livro e acabar dando outro. O cliente saia estarrecido pela brusquidão do livreiro e pelo livro ganho. Na maioria das vezes voltava para pegar outro livro.

Os volumes não estavam separados por autor ou tema como é nas livrarias e bibliotecas convencionais. Parecia que estavam bagunçados, colocados ali aleatoriamente, mas tinham um sentido muito mais lógico que o convencional: os livros estavam ordenados de acordo com as histórias e emoções que transmitiam, com sua capacidade e maneira de perceber as coisas e o mundo.
“Livros são quase como pessoas, a grande diferença é que os livros terminam, as pessoas não”

“E os livros que perduram pela História?”

“Quem faz os livros são as pessoas, mas nós seriamos nada sem os livros”.

Nunca entendi direito esse breve diálogo com Michael, e confesso que boa parte do que ele dizia era bastante indecifrável para mim, mas era inegável sua sabedoria e conhecimento da alma humana, por mais que a exprimisse em breves frases. Pois é, um sábio livreiro que não gostava de falar muito.

Um dia, fui até ele.

-Michael, tenho um problema

Ele franziu a testa e perguntou o que era.

-Não sei o que quero ser.

-Em que sentido?

-Que não sei o que fazer da minha vida, do meu futuro, não sei o que quero.

E apresentei a ele uma lista de livros que Lázaro tinha feito.

Michael balançou a cabeça

-Não é de livros que você precisa – afirmou e foi atrás da escrivaninha, mexendo nas gavetas a procura de algo.

Demorou um pouco mas finalmente escutei um “aaah, aqui está” e logo em seguida Michael que se erguia e me estendia um pequeno caderno.

-Tome, é disso que você precisa

-E o que faço com isso?

-O que te der na telha, escreva um pensamento que te vem, um pedaço de música que te ficou na cabeça, um acontecimento que achas importante registrar, um sonho… Ou queimar para aquecer a lareira he-he-he.

Michael tinha essa habilidade, te confundir e no fim você acabava se resolvendo. Ou saía mais enrolado do que antes dizia Alberto, que era uma pessoa bem objetiva.

Alberto frequentava a livraria, embora nunca o tenha visto ler um dos volumes empoeirados. Ele cuidava dos gatos que cercavam Michael e suas estantes. Além de objetivo era bem elegante, possuía um certo dom para ironia e uma dedicação admirável. Às vezes tinham momentos em que se perdia, estranhava tudo ao seu redor, sentia-se forasteiro em sua própria terra. Já em outros momentos me puxava pela mão até uma barricada enquanto balançava uma bandeira incitando os outros a vir ajudar, justo para citar um exemplo de vontade de lutar. Também amava a vida e o mundo, via-se de como observava a chuva quando caía e o passar dos automóveis, mas também pela maneira como acendia um cigarro e tragando-o dizia “foda-se esta merda”. Pode parecer ironia, mas não era, Alberto no fundo no fundo, gostava de viver.

 

Pipoca

Gritos, gritos e mais gritos, uma infinita sucessão de cabeças e bandeiras. Fomos pegos de surpresa por nós mesmos, e já eramos mais de cem mil ocupando a rua, paralisando a cidade e por um dia demonstramos que o povo pode sim fazer História.

Era o tempo das bandeiras hasteadas ao vento, o tempo das pedras.

Ficar rouco era o de menos, assim como se cansar. Entre cantos e pulos avançávamos. E não paramos nem com a barreira da policia. As bombas voaram e estouraram, as luzes se apagaram e os helicópteros sobrevoavam o centro em busca dos grupos dispersos que tentavam se reagrupar, destruíam as vitrines e incendiavam os sonhos.

No meio disso tudo encontrei Stepan de repente, as bombas explodiam atrás de nós e tudo fervia. Nos olhamos. Ele me fitou bem nos olhos e botou rapidamente a mão no meu ombro, como se quisesse dizer “Algo muito diferente está acontecendo, tome cuidado e se salve”. Stepan é assim, para ele gestos valem mais do que palavras.

E sumiu no meio da confusão multitudinária.

Cada bomba que explodia fazia a terra tremer e o coração saltar.

Com o coração quase pulando fora de raiva e medo, e os olhos estupefatos, consegui chegar na livraria de Michael para me refugiar.

Ele não estava, e sim Marta, que estava fazendo pipoca.

-O país está assim – disse ela

-Assim como?

-Ou melhor, tá pior. Pior que essa panela de pressão com o milho dentro estourando pra virar pipoca.

Rimos. Marta era bem responsável, mas isso não impedia a ela de ser totalmente espontânea e com grande tendência ao riso e a brincadeiras. Uma pessoa simples mas preciosa. Ela sabia muito bem o que queria: seu bem estar. O resto era secundário, não atoa com apenas 20 e poucos anos já trabalhara em milhares de empregos, o que me surpreendia sempre, já que em cada ocasião sempre acabava contando um caso ou ensinando algo que se relacionava com uma experiência de trabalho que tivesse a ver com a situação. Era uma pessoa de olhos sinceros, da cor das nuvens.

 

Bater de asas e de corações

Angelina tinha o coração do tamanho do mundo. Daí o sentimento que ela não sabia expressar, que era como se sentisse um vazio, apesar de ser, literalmente o contrário. Muito jovem para o desafio ao qual se colocava, tinha um ar de Dom Quixote, menina que decide enfrentar o mundo e coisas tão grandes que nem cabem numa frase. Essa era sua grandeza, ser tão pequena para a sociedade, mulher indefesa e descartável que decidiu dizer que seu coração existia e valia sim alguma coisa. Muita coisa na verdade.

Acontece que Angelina era bem mais nova do que eu. E me esquecia disso muitas vezes. Como aquela em que me perguntou (e suas perguntas eram muito mais desse tipo como as respostas que eu dava a perguntas nunca feitas sobre estratégia e transformação social, que talvez fossem perguntas para mim mesmo, eita doideira) no que consistia o amor, como era amar e como isso a acontecia.

De cara não soube direito o que respondi, disse que eu estava muito bem no momento sem ter nada a ver com isso, mas de qualquer jeito era importante tomar cuidado com o amor para que não se transformasse numa viagem de ônibus de madrugada no meio da cidade vazia, porque aí é melancolia, e bom, aí fudeu mesmo.

Não sei se ela percebeu o minuto de silencio contido em meus olhos, logo desviado por uma piada aleatória, justo para desviar a atenção.

Sorte (ou azar?) que Marta além de estar ombro a ombro na militância tinha um certo gosto por ficar fazendo o que chamaria (e me perdoem mais esta vulgaridade, mas assim é esta cidade e as vidas que nela seguem) de encher o saco.

Ela dizia que eu fugia das emoções. E tinha razão, percebi isso quando arrumando a papelada de casa encontrei uma carta de alguns anos atrás, que trouxeram à tona sentimentos e histórias abafadas. Assim um dia como tantos outros, em volta de uma mesa de bar como tantas outras acabamos aprofundando o assunto, que consistiu eu perguntar a ela se tinha conhecido Esmeralda. Ela disse que não e tomei coragem para contar a história.

 

Esmeralda era uma pessoa extraordinária, seus olhos penetravam fundo, dando uma certa sensação de insegurança e reverencia.

            Deitada, meus dedos percorriam seus cabelos e sua testa, com muito cuidado, com medo de que o mais leve aumento de força pudesse estilhaçar aquele encanto, digno de Avalon, ilha imersa nas neblinas.

            A lua está nascente e laranja. Pequenas ondinhas batiam contra as rochas. Do outro lado as luzes da cidade, de onde venho. Era um pouco como se olhar no espelho, se ver do outro lado… bateu uma certa inquietação, de que as coisas são mais frágeis do que imaginamos.

            Esmeralda suspira e murmura alguma coisa. Sorrio e uma brisa vem balançar os cabelos. Qual será o sentido de nossas vidas? Mais do que isso, o que nos aguarda no futuro? O que?? Não o sei e não há como saber, talvez esse seja nosso destino, sempre se levantar e lutar, mesmo que nunca consigamos atingir a vitória derradeira. Talvez seja isso mesmo, e quer saber, vale a pena. Ou não, ou vamos conseguir virar a situação. Mas e ai, imagina, como vai ser?

            Esmeralda se levanta e me olha nos olhos, quase que entrando neles. Me beija, e tudo se dissolve em seus lábios quentes como a sua vontade de viver. A revolução se dissipa, o sangue desaparece e tudo parece se fundir num minuto só.

            Ela se levanta e me olha profundamente pela última vez, antes de dizer:

            -Tenho que ir

            -Nos voltaremos a ver?

            Ela olha pra baixo, pela primeira vez vejo que ela foge ao meu olhar. Não precisa falar para me responder.

            Sorrio, um sorriso amargo, uma breve esticada dos lábios.

-Esmeralda… veja, quando o coração doer muito forte, olhe para as estrelas. E lembre-se que eu também estou debaixo desse mesmo céu. Eu farei o mesmo.

E aceno com a cabeça, enquanto um pequeno sorriso se estica entre seus lábios, enquanto os olhos deixam cair uma lágrima de ternura. Não teve tempo para um abraço.

            E meu coração ficou lá, no meio daquela rua, pegando fogo junto com aqueles destroços abandonados.

            Até que o vento passou e carregou as cinzas pelo ar, dispersando-as.

 

-E você nunca disse que a amava??

-Tipo isso

-Como assim tipo isso, nossa cara, tu tem problema ou o quê?

-As vezes pra não magoar alguém a gente se sacrifica e olha o trem passar

-Ih sai dessa, que papo torto é esse?

-Sem mais Marta, já deu desse papo hehe

-O que tem que você ainda não contou? Acho que teus leitores não vão entender por que ela foi embora…

-E não precisam, essa não é a história de minha despedida, não da dela, o que importa é o que fica, cada um pode imaginar o que quiser, inclusive você. O fato é que depois disso alguma coisa se quebrou dentro de mim, não sei direito o que…

-Humpf, tu ta ficando que nem Michael, velho e falando por parábolas e metáforas.

E mudamos de assunto. No bar é assim, fala-se de assuntos sérios e logo se desvia para outros, o lugar de enfrentar a seriedade dessas conversas é no caminho até casa, no breu da noite ou no amanhecer vagaroso da cidade.

Por falar em cidade, bom, esta aqui é enorme e há uma relação de amor e ódio. Tipo Doutor Jekyll e Mister Hyde, de dia é o ódio, ter que se mover por meios de transporte lotados e caros, um mundaréu de gente e transito que caminha sem parar e poderia te atropelar sem perceber. De madrugada e ao amanhecer há espaço para o insólito, para perceber as pequenas histórias e as casualidades.

Mas não só de cidade é feita a vida.

 

O compromisso

A paisagem deslizava entre o sacolejo da estrada de terra. Terra. Sentado em cima da mochila no chão da kombi, via as árvores e os campos se sucederem de costas. Parecia um daqueles filmes em que o personagem está metido numa selva sul-americana num caminhão de guerrilheiros e alguém de repente pega um violão e começa a cantar. Pelo menos era essa a sensação, a sensação da viagem e da luta.

Terra. TERRA. tÉrrrrrrrrraaaa. arreT.

O chão ecoava a cada passo, e se alguém percebeu minha emoção foi por causa dos olhos cheios d’água.

Pela primeira vez estava sem Alberto, Michael, Marta e Lázaro. Ninguém mais para pegar minha mão e explicar as coisas. A hora tinha chegado.

Ao meu lado estavam Stepan e Angelina. Juntos observamos nossos corações. Vermelhos como aquela multidão, negros como a profundeza daquele chão, sobre o qual pisávamos de pés descalços. Em volta das fogueiras ouvimos as canções do tempo.

Olhei para o céu. Tentei achar Esmeralda, mas ela não me apareceu lá, entre as estrelas.

A hospitalidade se revelou tão importante como a disposição de montar uma barricada, e no almoço coletivo contamos e ouvimos (sim, sobretudo ouvimos) as histórias dos outros, observando a chuva que caia e escutando os trovões distantes.

Voltamos, correndo sobre a estrada e deslizando pelos trilhos, e observei que Angelina estava muda e o riso parecia tê-la abandonado, podia ser cega, pois seus olhos não viam. Já Stepan observava a paisagem, e me respondia, mas sem virar o rosto. Eram sinais dos dois, cada um à sua maneira, que mostravam o quanto estavam pensativos.

No dia seguinte já tinham voltado a serem como antes. Mas a ruptura havia se consumado. E pela primeira vez na minha vida tive a sensação que observava filhotes de pássaros quando fazem o primeiro voô. E lembrei de mim um ano atrás. E chorei, como meu pai deve ter chorado ao me ver nascer. E nesse instante eu nasci de novo, um sentimento muito forte começou a se manifestar, a fazer a água subir aos olho, a atrapalhar a voz. Era meu coração, que renascia das cinzas, como um autentico tiê-sangue-fênix (o tiê-sangue é um pássaro pequenino, assim essa fênix é bem pequena e sua grandeza está na sua existência e coragem, não na imponência de suas penas e tamanho).

 

Um dia Stepan amou, ele que sempre franzira o espirito às emoções um dia acabou cedendo. Ele que não amava amou, e neste momento ele foi, acabou sendo, tomou conta de seu próprio ser.

Angelina também entrou para o Movimento, para a loucura que é tentar se organizar enquanto povo em torno de uma demanda. Nesse dia talvez ela conseguiu compreender um pouco melhor seu sentimento de vazio, e talvez tenha entendido que era por ter o coração cheio de coisas. E foi se livrando do que achava inútil e desnecessário. Transformou-se no que Stepan se tornara e no que eu já vinha me transformando, no que eram Alberto, Marta, e Michael: Companheiros e Companheiras para toda a vida.

Era o empoderamento que a luta faz da história e que nos empodera da vida. Chegara o momento de selarmos o percurso que tínhamos feito.

 

-Isso é anel de tucum, uma espécie de coco. É símbolo da união entre movimento indígena e movimento camponês, mas com o tempo passou a ser símbolo das lutas populares. Usar esse anel é aceitar o compromisso com essas lutas. E vejam bem, um compromisso pelo qual muitos e muitas foram até a morte. Vocês aceitam?

Angelina e Stepan permaneciam silenciosos. Estávamos sentados no chão, em roda. No meio de nós haviam três anéis.

Não precisamos dizer nada, seus olhares valiam mil palavras de luta e compromisso, e faiscavam, quase dava pra ver uma chama arder em suas pupilas. O momento era solene, mais do que eu imaginava. O tempo passou enquanto mudos sentíamos o peso do tempo e da história. Trêmulo, peguei um e coloquei no dedo. Os dois fizeram o mesmo.

Nos abraçamos. Lá fora a chuva caia torrencialmente.

 

Sobre chá e despedidas

O momento era mais solene do que parecia.

Abracei Angelina de olhos fechados, uma lágrima caiu no chão, não sei minha ou dela (talvez dos dois), uma lágrima capaz de fecundar a terra e fazer nascer uma flor. “Boa sorte, e volta logo” “Podexá, a gente se vê quando o vento soprar”. Stepan me olhou com aquele seu olhar de fé antes de me abraçar “Vai nessa compa” “Se cuida cara”.

Meu coração ficou naquela calçada, mas dessa vez não tinha-o perdido, ele ficara guardado naquelas nossas histórias que passamos juntos, nos nossos sonhos e esperanças.

Me virei para trás enquanto a vida seguia para o lado oposto.

Dizem que não se pode partir sonhando o retorno, que o amor é simples, e as coisas simples são devoradas pelo tempo.

Mas sinto que isso é diferente. O que me une à essa cidade, à essas pessoas é algo muito grande. O elo que nos liga é um elo forjado em meio à luta, em meio à construção de um mundo novo, um mundo que se encontra em nossos corações. Nos juntamos para construí-lo e estamos dispostos a dar nossas vidas para isso. Isso é algo muito forte. Algo que nos molda e nos torna fortes, pois como uma vez disse Alberto “A única coisa que te impede de delatar um companheiro quando se esta sob tortura é o amor que se tem por ele”. Isso envolve amizade, envolve sorriso.

O anel de tucum é circular. Círculos não tem aberturas. Há coisas que duram a vida toda, podem ter certeza.

Cada vez mais as montanhas, as florestas, o mar, os prédios vão ficando para trás, distantes. É algo mais do que uma despedida. É a ruptura com o que tem sido o meu mundo, a minha vida. Rumo para o desconhecido, tentar descobrir o que quero.

 

 

 

A fumaça sobe do copo dando voltas e piruetas pelo ar enquanto Kazim me oferece chá.

O céu é de um azul claro e imenso, o vento é gelado. As árvores estão como eu, sem folhas.

Passa uma revoada de estorninhos. O chão é cheio de pedrinhas que se movem e fazem barulho quando os pés se movem. A voz de Kazim é calma e grave.

-Sei como é isso. Também tive que ir embora da minha terra, deixar os amigos, a família, tudo. Sei como se sente, ainda mais nessa terra fria. Mas não se abata. Você não está fugindo de nada hahaha, tenha sempre orgulho de onde vem.

-Obrigado Kazim.

Ele arregala os olhos

-Jura? Achei que esse conselho você já tivesse ouvido de todo mundo

-Obrigado pelo chá e pela voz, quanto ao conselho…. bom, o que conta é a intenção

Rimos calorosamente. Olhei para as nuvens que passavam devagar como navios, sem se importar com o que acontecia debaixo delas. Pedi que levassem minhas lembranças.

O sol se pôs tingindo o céu de laranja, por cima as gaivotas e corvos emitiam seus gritos. O mundo e a vida davam voltas pra um dia a gente voltar a se reencontrar.

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